AINDA A PROPÓSITO DA MORTE...
...lembrei-me de um poema de minha autoria, que gostava de partilhar convosco. Sempre tive a ideia de que a vida passa mesmo muito depressa. Tentamos, todos os dias, não pensar muito nisso. E às vezes não pensamos mesmo. Mas choques destes dão para pensar nesse assunto quase com o dobro da intensidade. O dobro do tempo. Passo a transcrever.
UM DIA NA VIDA... A VIDA NUM DIA
Nasci ontem, eram seis da madrugada.
Mergulhei da incubadora, de cabeça,
fui para casa, já andando de mão dada.
Conheci os meus parentes, sempre à pressa,
porque a escola começava às oito e meia.
Fui ao quarto, para vestir a minha bata,
pus os livros na mochila, até estar cheia,
e o meu pai quis ensinar-me a pôr gravata.
Despedi-me dos meus pais e caminhei;
fui seguindo os seus acenos comovidos.
Convenci-me que era forte e não chorei,
mas choravam, cá por dentro, os meus sentidos.
Já na escola, encontrei os meus amigos.
Conversámos, trabalhámos com afinco,
e os outros, gélidos como jazigos,
já faziam antever o meu destino:
reformar-me ao chá das cinco.
Ao meio-dia, entrei para a Faculdade.
Vida dura, a de alguém que quer emprego!...
Lá fui eu, trabalhando sem piedade
de mim próprio. Consegui, mas vi-me grego!
Às três horas, arranjei emprego estável.
Era pouco, mas lá dava para o pão.
Contentei-me com salário miserável,
consenti que me tratassem como um cão!...
Apressado, o relógio ia nas quatro.
Demiti-me do emprego e retirei-me;
Fui ao bar ali de fronte (estava farto!);
foram uns copos a mais e... embebedei-me!...
Mas lá dentro não foi só fazer figura:
encontrei uma mulher, que nem num quadro;
nem sequer na mais magnífica escultura!...
... e daí foi só um passo até ao adro.
Dez para as cinco a bater e... casamento!
Toda a gente fez questão de estar presente.
Foi, talvez, o meu mais vívido momento
até hoje. Tudo, então, ficou diferente.
Foram só cinco minutos, já nascia
o meu filho tão esperado – o primeiro.
E havia uma coisa que eu mais queria:
era estar a sós com ele o tempo inteiro.
... e vieram cinco horas e a reforma...
Já em casa, a palavra mais amarga;
a palavra que em dor o mal transforma;
a palavra que não deixa e que não larga;
“Não sei como hei-de dizer-to, Manuel...
Os teus pais, agora mesmo, faleceram...”
- Ah, palavra crua e feia, travo, fel!...
Quantos contra ti lutaram e perderam?...
Quantos mais, também em vão, irão perder?... -
Com a morte de meus pais, morri também.
Por segundos, abstraí-me do meu ser...
Por momentos, eu senti-me sem ninguém.
De repente, vi que era meia-noite.
Lentamente, fui voltando à outra margem.
O meu filho já crescera, bem afoito;
consegui, então, rever a minha imagem.
Duas horas da manhã – noite sadia.
Fui ter com minha mulher e abracei-a.
O meu filho já há muito que dormia,
porque a escola começava às oito e meia.